Coluna Práxis / Coordenadora Juliana Lopes Ferreira
Estamos num momento histórico no qual alguns comportamentos tidos como naturais começam a ser questionados. E provocam mudanças nem sempre entendidas pela maioria das pessoas e que entram numa rota de difícil retorno.
A conquista pelos direitos humanos, o voto feminino, por exemplo, foram anomalias no início. Anomalia que, segundo Thomas Kuhn, “é uma violação as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal” (1).
Trazendo o mesmo conceito para o desenvolvimento da sociedade humana, violar as expectativas de uma sociedade patriarcal é o caminho da evolução da sociedade e, assim, as mulheres começam a conquistar um lugar na estrutura social.
A luta pela implantação dos Direitos Humanos e pelo respeito à Natureza, a inclusão dos chamados “diferentes”, por exemplo, ensejam mudanças inicialmente quase imperceptíveis, mas que abrem caminho nas fraturas do sistema social em vigor que já não responde aos anseios da Alma humana. Esse movimento configura o surgimento de uma Nova Estrutura, composta do que antes era considerada anomalia e que será a base do novo modelo paradigmático.
A exclusão sempre foi um recurso usado pela humanidade para não entrar em contato com o diferente, com o que não cabia na interpretação de um mundo resultante de um sistema rígido e de hierarquia verticalizada. Os loucos, os deficientes, os que questionavam o rígido e o hierarquizado, com escoras no sagrado e no misterioso, eram excluídos.
Assim como na Natureza, tudo segue um fluxo de desenvolvimento. É assim, também, no desenvolvimento das sociedades e na evolução do conhecimento, possibilitando um movimento espiralado de avanços sociais e existencial (2).
O progresso não é ascendente e não se eleva, não se dirige para cima ou para um cume de verdades absolutas. O desenvolvimento seja do conhecimento ou da consciência humana é expansivo. Não existe acima, nem abaixo. Sempre varrendo as teorias ou conceitos que já não respondem ao anseio humano, o que permanece em algum momento não terá resposta para as novas questões que surgem no futuro. Daí a provisoriedade das verdades, cientificas ou não (3).
Para Karl Popper, filósofo austríaco, viver é um processo de solução de problemas até mesmo para uma ameba. E para resolver qualquer problema “P” é preciso criar uma teoria “T”. Eliminar os erros “EE” da teoria e chegar a uma solução “S”. E essa solução trará embutida em si mesma novos problemas “Pn” que não existiam no problema “P”, necessitando de novas teorias para chegar a novas soluções.
À medida que o conhecimento vai avançando, como indivíduo e como sociedade, a forma de organização também vai se transformando. E o que antes era aceitável passa agora a ser inadmissível.
Mas não é sem reação que acontecem as mudanças nos sistemas e na consciência humana. Novas teorias são criadas para atender as novas perguntas resultantes desta evolução e da seleção natural de organizações humanas. As anomalias podem ser deixadas de lado ou podem se impor fazendo surgir a necessidade de um novo modelo para dar conta das novas questões que surgem.
A inclusão dos chamados deficientes se impõe no novo modelo de convivência entre os humanos, indicando o surgimento de uma Nova Estrutura que olha o Ser dentro de um corpo e não um corpo que tem um Ser. Para este Ser, o corpo do jeito que é conduz o fluxo da Vida que pode se manifestar de forma diferente do padrão criado culturalmente.
A sociedade se construiu tendo como padrão o atendimento da maioria. Para a sociedade, obrigatoriamente, todos teriam os cinco sentidos e o corpo completo para ser aceito. Estes conceitos estavam em consonância com o Sistema Operacional Criacionista.
O sistema operacional criacionista está fundamentado no mito da criação do mundo por um ser divino que fez a terra e todo os seres viventes em seis dias. Um ser que, tendo criado o homem e vendo que não era bom que ele estivesse sozinho, criou a mulher, precisando, para tal, retirar o DNA a ser modificado da costela de sua criação máxima: o homem. Assim, no mito, homem e mulher são colocados no paraíso, onde tudo está feito e perfeito. Nada a fazer, portanto, impossibilitando aos seres criados, perfeitos, o acesso à criatividade. Para eles, apenas o viver.
Ainda bem que a criatividade feminina botou o plano de limitação da raça humana a perder. Pela observação da cultura das sociedades através dos milênios, os sistemas de pensamento criados a partir desse sistema operacional produziu sistemas sociais fechados, com verdades absolutas e onde o que não é perfeito precisa ser escondido para não colocar em xeque a perfeição divina. E como, no mito, houve a expulsão do paraíso, a tendência dos sistemas de pensamento conectados e operados pelo criacionismo é sempre achar que antigamente era muito melhor que hoje.
Já o Sistema Operacional da Evolução da Espécie e Seleção Natural abarca todas as mudanças, sendo ligado as anomalias que podem (ou não) forçar a busca de explicações mais lógicas através da criatividade humana e do desvelamento do funcionamento de si e da Natureza para o aprimoramento da Natureza e do humano.
O Sistema Operacional baseado no mito da criação opera os sistemas fechados, de hierarquia verticalizada, com forte tendência ao pertencimento e ao controle do que se dá e do que se recebe. Não bastasse a criação no mito ser mágica, acrescentou-se a culpa pela desobediência, momento único no qual o homem seguiu, a contragosto, a inquietação criativa da mulher em relação à maçã. O resultado foi a punição por ousarem criar uma forma de viver saindo do tédio da perfeição.
O criacionismo como mito teve a função de naturalizar o controle do homem sobre a mulher, subordinando-a, sem perceber o grave efeito colateral para o homem: o peso de ser o protetor, o forte, a cabeça pensante. Sem contar o peso tanto do homem quanto da mulher: sempre serem e terem filhos perfeitos, dentro de uma perfectibilidade inexistente.
Mas para aliviar um pouco a pressão interna e externa é oferecida a possibilidade de ser “escolhido e capacitado” para ser o diferente: sistema binário, fechado, onde tudo que foge do já estabelecido não tem pertencimento.
O esgotamento desse sistema é perceptível pela implosão da sociedade patriarcal através dos movimentos dos direitos do Ser, tenham os cinco sentidos ou não, tenham corpos completos ou não. Este Ser pode se expressar da maneira que lhe aprouver ou lhe for possível, buscando o conforto existencial da forma que sua Autonomia Existencial lhe permitir: sem culpa, sem medo e com uma profunda alegria de viver.
O mundo comporta infinitas possibilidades de interpretação. Cada Ser é um universo em ebulição e a humanidade que ainda não chegou, ainda, ao ápice do Homo Sapiens (4), caminha, ora em passos lentos, ora em compasso de espera, rumo à implantação da Ética da Solidariedade (5), num trabalho de expansão da consciência, do conhecimento e que faz parte de mudanças regidas pela Vontade que é, simplesmente, a expressão da Potência do Além Homem Nietzschiano.
A inexorabilidade do processo de desenvolvimento humano impele este Ser de construir as condições necessárias para superar a condição ainda não humana de excluir quem não faz parte do padrão estabelecido.
Nos sistemas fechados a troca dos elementos com o exterior é mínimo. A grande atividade fica restrita a comunicação entre os elementos internos. O sistema aberto interage com o meio externo (6). O crescimento do conhecimento se dá na interação das várias teorias para que haja uma seleção natural e permaneça as que trazem mudanças nos sistemas.
Assim também acontece nos sistemas sociais. Quando fechados, permanecem presos à tradição, fazendo sempre o mesmo e, consequentemente, obtendo o mesmo resultado.
O Sistema Operacional Evolutivo é aberto, sempre submetido a busca pelo aprimoramento dos instrumentos que possibilitam mudanças estruturais.
No reino animal a seleção das espécies se dá seguindo leis de sobrevivência, o mais forte ou o que tem a melhor estratégia seguem. Já no reino hominal a evolução seguindo os sistemas de pensamento criados desde a caverna, quando ficavam juntos apenas para garantir a sobrevivência da espécie. Com o tempo surge na alma humana o anseio de estar junto para conviver e aparecem as tribos. Com o passar do tempo a vontade de querer as coisas por si, sem tutela dos mais velhos como era nas tribos. E aparecem os impérios: ambição desmedida, sendo os interesses privados colocados acima de tudo e de todos. Logo surge outro anseio na alma humana por uma sociedade organizada, aparecendo os Estados: lei e ordem, cada um no seu lugar (2).
Como não se pode fugir do desejo de expandir, é criado outro sistema de pensamento em que a criatividade ocupa o lugar principal. Há que se criar estratégias para chegar onde se quer, sem a força bruta. Mantendo a estratégia, novo sistema de pensamento aparece com hierarquias horizontais e fortalecimento dos direitos das mulheres. O lema desse sistema de pensamento é olhar para si e para o outro, seja quem for este outro: árvore, bicho ou gente. O movimento Hippie traz mudanças nos comportamentos e nas roupas embalado pelo rock and roll (2).
A partir daí, o próximo sistema que surge com a hierarquia em rede, na qual a competência e o conhecimento dão o tom das relações em suas múltiplas facetas. Conhecimentos múltiplos, cada um com sua importância em dado momento. Daqui para frente os sistemas de pensamentos se sofisticam olhando a si, ao outro, a Natureza e aos Universos. E as pessoas que já olham o mundo por esta janela querem mais. Querem todos com as mesmas oportunidades e possibilidades para escolherem o que mais as fazem felizes.
Com a inclusão de todos em uma comunidade viva em rede se constrói uma força que varrerá para o lixo da história os que pensam deter a caminhada do Ser em suas múltiplas expressões.
Todos, com mãos ou sem, com braços ou sem, com pernas ou sem, com cinco, com quatro, com três, com dois sentidos ou com apenas a capacidade de pensar serão bem-vindos e encontrarão alegria de Viver. A Vida é o Bem Maior. É muito bom viver!!
Notas e Referências
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2013.
BECK, Don Edward; COWAN, Christopher C. Dinâmica da Espiral: Dominar valores liderança e mudanças. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
POPPER, Karl. O eu e seu cérebro. Campinas: Papirus; Brasília: UnB, 1991.
Do latim homem sábio; homem que sabe.
Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015