Iniciada a sessão de mediação familiar com a concordância dos envolvidos, a quase ex-cônjuge e bem arrumada Maria do Céu explicou o motivo que a levou até ali. Tinha separado de seu marido José do Espírito Santo há dois anos e precisava regularizar seu divórcio. José, por sua vez, mostrou-se presente e acompanhado de seu advogado. De suas poucas palavras, Maria extraía um manancial de informações.
Maria contou a mediadora o trauma da separação motivada por inúmeras traições de seu marido, até carinhosamente apelidado por ela de “Judas”, pessoa muito presente em seu discurso. Após tanto desgaste e sofrimento, chorosa, ela disse ter saído de casa só com as roupas do corpo e agora, com o iminente divórcio, esperava recuperar os bens que adquiriram juntos durante a união.
José admitiu a situação do desenlace e quis encerrar o relacionamento da melhor maneira possível ou, quem sabe, tentar de novo. Nas palavras dele, muito jovens e inconsequentes, ambos tomaram atitudes precipitadas. Não que ela aparentasse mais idade, afinal continuava bonita como sempre, disse ele.
Mas não teve jeito. Nas duas horas seguintes Maria manteve-se resoluta. Tornou a relatar em detalhes as situações constrangedoras que viveu enquanto esposa e a necessidade que tinha por seus bens, algo que José começava a concordar. A essa altura o advogado, que tinha revelado ser pastor, passou ao seu cliente uma extraordinária reprimenda.
− O que Deus uniu, o homem não separa. Pense melhor, meu rapaz. E peça desculpas, orientou o advogado-pastor.
Judas, digo, José fez suas colocações em contraponto as de Maria. Com todo respeito à figura do senhor advogado − depois de um debate caloroso numérico-sentimental − precisei encerrar a mediação. Resumi para o casal tudo que me foi dito e, lembrando o combinado inicial, sinalizei a importância de marcarmos a segunda sessão. Com informações mais precisas sobre os bens iriam dividi-los, conforme se predispuseram. Perguntei se podíamos manter a próxima sessão no mesmo horário, mas apesar da anuência de José, Maria assim respondeu:
− Acho melhor mais tarde, preciso me arrumar depois de sair do trabalho e antes de voltar aqui. Cabelo e maquiagem levam tempo. E preciso estar bonita. Vai que…
Silêncio.
Ué, mas não iam separar? Pensei eu. Não. Na verdade, não pensei nada.
O Direito tradicional constituído por um ordenamento jurídico permeado de normas estanques apresenta atualmente sinais de crise no Brasil: a politização da Justiça, problemas políticos tornam-se cada vez mais jurídicos e a escalada dos conflitos, mais desentendimentos e mais processos. Ainda, a falta de efetividade de decisões judiciais, tornando a realidade do processo distante da realidade social e demonstrando claramente o atraso da área jurídica em estruturar relações sociais e demandas populares.
Esse Direito, caraterizados por pressupostos da objetividade, simplicidade e estabilidade, pode ser conhecido por um nome: hard law, o “direito duro”. A objetividade determina que os profissionais do Direito atuem de forma objetiva, jurídica e imparcial sobre os casos, eliminando o caráter subjetivo de seus interlocutores.
Simplicidade na medida em que a análise do caso se restringe a determinada situação sem considerar suas implicações em relação ao meio (individual, familiar, social, profissional), e estabilidade tendo em vista que são normas abstratas e gerais, a lei é para todos sem distinções. Em suma, bastaria um “cabo de esquadra” ou um “guarda da esquina” a julgar.
O que dá visibilidade a crise do hard law é o surgimento de problemas sem solução: decisões jurídico-políticas que evidenciam a anomalia da objetividade, por exemplo. Antes de serem casos difíceis, são situações que demandam nova forma de pensar o Direito para organizar as relações humanas, segundo os anseios da sociedade.
Nessa área de casos aparentemente insolucionáveis surge o soft law, o “direito flexível”. Nele, a proposta é pensar sistemicamente o Direito, reconhecendo a intersubjetividade de seus interlocutores, a autonomia que possuem para resolverem consensualmente seus conflitos, a capacidade para autogerirem suas relações e a percepção de si mesmos e dos sistemas nos quais estão inseridos. Dessa forma nos situamos no mundo como agentes construtores da nossa realidade social e preparados para as incertezas do futuro.
Podemos pensar que há flexibilidade e, quiçá, suavidade no Direito quando ele deixa de manter forçosamente as regras jurídicas abstratas vigentes e passa a cuidar das relações humanas, prevenindo conflitos e moldando-se as demandas sociais. Direito a serviço de uma sociedade organizada em processo constante de mudanças.
No soft law, os profissionais do Direito deixam as atividades mecanicistas para as máquinas e criam ideias e atitudes para reformular seu perfil e adequá-lo a uma concepção mais humana de Justiça, passando a trabalhar prioritariamente para as pessoas e com as pessoas, elegendo o Cuidado como valor jurídico maior.
Warat faz remissão a teoria dos sistemas sociais de Luhman quando critica o ordenamento jurídico vigente que concebe o sujeito como conjunto de normas positivadas. O “[h]omem concreto e sociedade são um para o outro, mundo circundante, sendo um para o outro, complexo e contingente. O Homem é para a sociedade e esta para aquele um problema para resolver (…) ambos são de tal modo estruturados que podem coexistir” [1].
Assim, Warat desenvolve uma epistemologia de significações [2] como crítica ao direito vigente, considerando a busca do direito no interior de uma teoria social (caráter sistêmico) e o sujeito jurídico um complexo de significações.
A sociedade moderna acostumou-se a viver os conflitos como caos, algo que demandava por ordem e punição. Encontrou resposta no direito, concebido como normas para organizar a sociedade. Porém, grandes questões entraram em pauta na sociedade contemporânea, como a permanência e a objetividade das coisas. Citando Prigogine, Warat apresenta uma visão de mundo em processo de construção, reunindo várias áreas do conhecimento em direções plurais ao novo e ao imprevisível.
Nesse processo de construção coletiva, a compreensão do direito passa a ser de agente transformador da realidade social imbuído de novas ideias e valores, pois esgotados os princípios organizadores da sociedade centrados no auto interesse.
A sociedade contemporânea produz novas ideias e valores organizados em redes de relacionamento, como menciona Capra e Mattei e entendidos por Warat como uma nova política de civilização. Uma política de qualidade de vida em que se encontram a solidariedade, a ética e a cidadania como fundamentos basilares.
Nesse sentido, Morin apud Warat “se fez evidente que a vida não é uma substância, e sim, um fenômeno de auto-eco-organização extraordinariamente complexo que produz a autonomia” [3]. O ecológico ou o termo “eco” faz referência ao que Warat considera como desenvolvimento humano, “o esforço do homem em melhorar suas condições de vida, em termos de sua subjetividade, feitos, cidadania e formas de sociedade” [4].
Essa nova visão de mundo permite a compreensão de um direito humanizado, que enxerga as relações humanas através do exercício da cidadania e da busca pela qualidade de vida de todos, inclusive das gerações futuras.
O direito e a justiça humanizados (nas relações e não nas palavras) buscam o desenvolvimento humano e a qualidade de vida baseados na cidadania e nos direitos humanos. Cidadania como concretização dos direitos humanos.
Na visão da sociedade moderna, a solução adjudicada (decisão judicial) é o método tradicional para solução de disputas e as vozes das pessoas envolvidas são substituídas pelo formalismo jurídico de seus representantes processuais, que sempre resulta na violenta imposição de um sobre o outro, o dualismo ganhador-perdedor.
A sociedade contemporânea expande o olhar, incluindo outras formas de solução de conflitos direcionadas a cidadania. A mediação como exercício da cidadania se dá no modo de se relacionar com o outro; como possibilidade de cada um se reencontrar no conflito; como forma de recuperar a autoestima; no decidir-se em todos os aspectos da vida; no ato de sair do silêncio e dar voz no conflito; na legitimidade do sentir-se em relação ao outro; no espaço do perceber-se; na realização da autonomia.
Nesse sentido, a justiça da outridade (também nomeada de justiça cidadã) apresenta uma face na administração de conflitos pautada na conduta ética [6] de se colocar a serviço do outro para melhorar sua qualidade de vida, sem prender-se aos conceitos do que é correto/incorreto; é perceber o outro como ele é; é colaborar na busca para alívio de dores e sofrimentos.
Pra Warat, o direito está para a humanização dos conflitos, não para paz social. Os mecanismos consensuais em uma abordagem humanizada como a mediação são formas mais eficazes de administração de conflitos, pois garantem a todos o direito de decidir seus conflitos por si mesmos.
NOTAS E REFERÊNCIAS:
1 WARAT, L. A. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. v. 2. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 319-320
2 Conceber o direito como área do conhecimento que possui como elementos o poder e sua influência ideológica na prática jurídica. Como a direção do estudo é percorrer os métodos consensuais irradiados pela noção sistêmica do direito, não se entrou na investigação detalhada do referido conceito.
[3] WARAT, L. A. O ofício do mediador. Florianópolis: Editora Habitus, 2001, p. 249-251.
[4] WARAT, L. A. O ofício do mediador. Florianópolis: Editora Habitus, 2001, p. 267.
[5] Conduta ética sem vínculo universalista ou religioso.
CAPRA, Fritjof; MATTEI, Ugo. The ecology of law: toward a legal system in tune with nature and community. Berrett-Koehler Publishers, 2015.
WARAT, L. A. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. v. 2. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.
WARAT, L. A. O ofício do mediador. Florianópolis: Editora Habitus, 2001.
WARAT, L. A. A fantasia jurídica da igualdade: Democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 36-54, jan. 1992.
Se o Direito fosse uma pessoa, como seria? Homem branco de avançada idade, elegantes e longas vestes, um pouco gordinho e quase sempre atrasado. Alguns de seus pronunciamentos saem num fôlego só para evitar fadiga. Outros surgem empolados e extensos, configurando-se verdadeiras homilias das antigas − em latim e de costas.
De Coimbra e Évora, conceitos escolásticos jesuítas em uma construção jurídica milenar. Mas o que é o tempo? O Direito embarca rumo ao Brasil e nasce no claustro no Mosteiro de São Bento em Pernambuco e no Convento de São Francisco em São Paulo − expoentes jurídicos atuais do ensino de qualidade.
Ao longo dos séculos o Direito brasileiro passou por um efeito camaleônico ao adaptar-se aos interesses do momento. Construiu várias faces, aquelas tensas e bem fatigadas encontradas em bibliotecas com enciclopédias empoeiradas e plenários cheirando a mofo; aquelas de olhos vivos com cabelo desgrenhado, achadas na rua e logo mortas. E não vamos esquecer daquelas faces horríveis, misturas do mal com atraso e pitadas de psicopatia, encontradas em algumas sessões de julgamento.
Mas no ano passado, pensando em mudar, esse senhor cansado ganha um novo shape. Depois de cirurgias plásticas, botox e demais procedimentos estéticos, o Direito parece novo. De cabelos pintados e lentes com mal contato entende que o melhor é “respeitar a democracia”, dizendo amém à precariza, digo, flexibilização das relações de trabalho, à reforma da previdência e aos cortes de verbas para Saúde e Educação.
Embora aparente juventude, parece que o fim desse velhinho está próximo. Em flagrante confusão mental balbucia enunciados contraditórios ou cancelados por aparente arrependimento.
Repensando seus valores, ele topa com um jovem inquieto e criativo. Oscilando entre o tédio e o interesse, ele escutou o jovem e percebeu seu entusiasmo. O jovem falava de constelações e sistemas familiares abertos, de mediação e processos de diálogo (não de papel, criticou o senhor), além da necessidade de nos comunicarmos de forma clara e não violenta.
O jovem falou também sobre a criação de novas estruturas para as pessoas com espaços de reflexão, de pensar e de sentir, como a Casa da Família: um lugar com possibilidades de tratamento de conflitos humanos. O jovem falou também sobre a importância de incluir todos no processo de construção de um mundo solidário do qual já fazia parte.
Sandices, pensou o velhinho. Cansado, despediu-se do jovem e ficou por ali, a margem. O jovem seguiu em frente, com alegria na alma e plena vontade de viver. Seria esse jovem, o Direito do futuro?
Desde
pequenos os filhos de Dona Sandra escutam de sua mãe: “guardem seus calçados”
ou “desvirem os chinelos”. Ela não sabia explicar, só sabia sentir um profundo
aperto no peito quando observava as portas dos armários abertas, chinelos
virados, espelhos expostos em dias de tempestade.
Dona Sandra processava a maioria das informações por uma via peculiar. Para ela, bênçãos, maldições e encantamentos podem justificar fenômenos naturais. Afinal, ela se indagava: como explicar aquele desconforto?
Existem várias formas de pensar. O indivíduo que se descobre e, com sua ambição, constrói impérios; depois pensa existir um significado e propósito únicos para a vida, e então descobre a ciência e desvenda os fenômenos naturais, o mesmo indivíduo que restaura o contato com o grupo juntando sentimento à racionalidade e continua a evoluir.
Ampliam-se consciência e conhecimento para uma visão sistêmica e integrada de si, do outro, do mundo e de todos.
Mas para Dona Sandra isso não era fácil. Ainda que fosse professora de ciências e soubesse racionalmente não haver problemas em comer manga com leite à noite, ela não comia por sentir tamanha aflição.
Chegando em casa, logo se pôs a desvirar seu chinelo, e brigar com o filho mais velho para não mexer em suas coisas. Indagada pelo filho sobre o porquê fazia aquilo, respondeu como se fosse o óbvio “chinelo virado a mãe morre”. Divertido, o filho insiste e pergunta a mãe sobre a vó e ganha como resposta “sei não, morreu há vinte anos”.
Conto curto inspirado
na dinâmica da espiral.
Referências
BECK, Don; COWAN, Christopher. Dinâmica da Espiral. Dominar valores
liderança e mudança. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
BECK, Don; et al. Spiral Dynamics in Action. Humanity´s Master
Code. United Kingdom: Wiley, 2018.
Há
dez anos comemoramos o dia da justiça social. A data, criada pela ONU, tem o
propósito de reforçar os objetivos de desenvolvimento social, tais como a
erradicação da pobreza, o pleno emprego e a inclusão integrada de todos.
Segundo Nancy Fraser, a justiça social consiste em um olhar bifocal, eliminando
as desigualdades socioeconômicas (políticas (re)distributivas) e dando voz às
diversidades culturais, ao respeito e à inclusão (políticas de reconhecimento).
Em 2019, o relatório da comissão global do
futuro do trabalho promovido pela centenária OIT revela deficiências alarmantes,
como, por exemplo, a contínua desigualdade de gênero no âmbito econômico-social.
A participação do homem na força de trabalho é 30% maior do que a participação
das mulheres, as quais ocupam o maior índice de subutilização do trabalho.
Além
disso, nem sempre estar empregado é garantia de vida digna. São dados apresentados
pelo relatório: 2 bilhões de trabalhadores ocupavam empregos informais em 2016, o que corresponde por 61% da força de trabalho mundial;
Estima-se que 172 milhões de pessoas em todo o mundo estavam desempregadas em 2018;
Atualmente, cerca de 2 bilhões de pessoas vivem em
situações vulneráveis e afetadas por conflitos, das quais mais de 400 milhões
têm entre 15 e 29 anos.
Mais de 1/4 de trabalhadores em países de baixa e
média renda viviam em extrema ou moderada pobreza, não sendo o emprego uma
garantia da diminuição da pobreza.
O cenário não
comporta comemorações. Ao contrário, demonstra que a desigualdade atinge
índices preocupantes. Por isso, o dia de hoje serve para refletir sobre o tema
que parece tão utópico no Brasil, maior país em concentração de renda em 1%
mais rico da população.
O início do
pensar sobre justiça social deve passar de sobremaneira pelos direitos
fundamentais do cidadão constantes na Constituição Federal de 1988 (CF/88), na
qual são garantidos a todos: educação, moradia, saúde, alimentação, trabalho,
segurança e outros tantos direitos que deveriam ser efetivamente concretizados
através de políticas públicas.
Celina Souza
explica que política pública é “colocar o governo em ação”, analisando-a e
transformando-a quando necessário. Assim, não restam dúvidas sobre a
responsabilidade e o compromisso social do Estado no dever de agir, cuidando do
cidadão como sujeito de direitos e não como objeto de caridade, situação que o submete
a uma posição passiva de aceitação de qualquer coisa, ainda que aquém dos direitos
que concretizam a dignidade humana.
Eu e você,
enquanto membros da sociedade, também temos o dever de nos questionar de que
maneira nosso agir impacta na construção da Justiça Social e, o que é mais
importante, se realmente impacta. Se acho que faço minha parte alimentando ou
cobrindo alguém como pessoa caridosa que sou, acho que preciso refletir mais
sobre minhas ações. Não que isso seja ruim, é bom! Porém, não muda a realidade
de ninguém. Caridade é dar o que nos sobra, é dar “o pouco que ajuda os
pobres”. É doar aquele cobertor que não usamos mais ou aquela roupa que já viu
dias melhores para nós, mas não para o outro.
A partir do
momento em que mudamos nosso comportamento atraindo para nós o compromisso e a
responsabilidade social na coconstrução de uma realidade igualitária, entramos em
relação com o outro e vislumbramos a Justiça Social em seus próprios termos:
reconhecemo-nos em privilégios; visibilizamos pautas identitárias; incluímos socialmente.
Vamos
aprender a compartilhar o que temos no lugar de dar o que nos sobra? Talvez
ainda deixemos a desejar, tal qual nosso governo, mas que a máxima freireana
seja um guia para nossas ações presentes e futuras: “eu brigo para que a
justiça social se implante antes da caridade”.