Comumente o termo soft law é conhecido no âmbito do direito internacional para se referir à flexibilidade pela qual os Estados negociam e se organizam através de resoluções, códigos de conduta ou recomendações não equiparadas ao direito formal hierarquizado e sancionador [1]. Sem tradução precisa para o português, seu significado se aproxima a “direito flexível”, um contraponto às normas duras do hard law.
Utilizado com reservas, soft law ainda é um marco jurídico negado por alguns autores como Prosper Weil ao afirmar sobre o conteúdo vago e a forma indefinida do soft law, considerando-o uma falácia por não existirem outras compreensões além do direito/não direito. Para Jan Klabbers, o soft law deve ser descartado por inconsistências em sua origem e por não se constituir em práticas jurídicas ou estatais consolidadas [2].
Há mais críticas a respeito do soft law. Desde a excessiva liderança anglo-saxônica à legitimidade no processo de elaboração das regras (pode ser realizado qualquer grupo de pessoas – organizações governamentais ou não governamentais, instituições, associações), embora a adesão ao documento seja o fator determinante para consolidação de sua legitimidade.
A maioria dos questionamentos foram superados e cederam espaços para novas divergências: se hard law e soft law são complementares ou antagônicos, se soft law pode ser considerado uma das fontes do direito internacional ou um elemento que compõe o processo de criação das normas, dentre outros. Embora exista uma miríade de significados sobre soft law, certo é que não há dúvidas sobre sua existência e permanência no universo jurídico.
Um dos pais fundadores do termo soft law, Dupuy atribui-lhe caráter de fenômeno social, afirmando que representa uma criação normativa contemporânea, não unicamente relacionado ao ramo do direito internacional, mas estudado a partir dele por surgir nas mudanças estruturais das relações entre os Estados, após a II Guerra Mundial [3].
Dentre as razões para esse acontecimento encontram-se a criação e ampliação de organizações não governamentais (locais e globais), oportunizando uma estrutura de cooperação permanente e contínua para seus Estados-membros negociarem questões políticas, econômicas e sociais.
Ainda como razões, encontram-se a inclusão das perspectivas socio-jurídicas dos Estados componentes das organizações internacionais, bem como a necessidade de consensos jurídicos aplicáveis e ajustáveis a cada novidade proveniente do rápido desenvolvimento econômico e tecnológico global das últimas décadas.
Evans considera soft law como instrumentos de caráter não vinculativo utilizados nas relações internacionais contemporâneas pelos Estados e organizações internacionais [4], ou seja, entendimentos e diretrizes constituídos pelas referidas organizações, a partir das negociações entre seus Estados-membros, que aderem o texto, cujo as regras não são de cumprimento obrigatório.
Essa característica não vinculativa facilita “o desenvolvimento de ideias compartilhadas de negócios globais, com grande possibilidade de flexibilidade quando das incertezas dos negócios pactuados”35, fazendo com que esse processo de interação entre os entes gere possibilidade de mudanças na percepção dos interesses de cada um sobre um determinado assunto.
Ademais, segundo Shelton apud Gregório, os instrumentos de soft law têm os procedimentos de adoção, alteração e revisão mais rápidos, tornando-se mais adequados às questões que necessitam de revisões reiteradas.
Enquanto para alguns soft law ainda apresenta aspectos imprecisos, para outros, oferece aspectos multifacetados: soft law como instrumento regulatório e não norma jurídica; como etapa prévia à criação da norma jurídica tradicional; como fonte de direito; como opinião pública internacional; como norma de natureza interdisciplinar, pois versa sobre questões jurídico-políticas, econômicas ou morais.
Além do direito internacional, soft law se faz presente em outros ramos do direito como arbitragem internacional, ambiental e empresarial, caracterizando por abordar aspectos políticos, jurídicos, éticos, econômicos e sociais. Ainda se estende por diversas modalidades: conteúdo aberto de enunciados, inclusive com viés principiológico; conteúdo que dispõe sobre métodos alternativos de conflitos (arbitragem, conciliação e mediação), atos entre os Estados ou de organizações não governamentais que não sejam obrigatórios e instrumentos produzidos por organizações objetivando diretrizes de comportamento sociais (códigos de conduta), protocolos, guia de boas práticas.
São conhecidos exemplos de soft law: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o meio ambiente e desenvolvimento (ECO-92), os padrões adotados pela International Organization for Standardization (ISO), as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outros, temas que denotam a real importância do soft law [5].
Para os juristas Haocai e Gongde, os direitos humanos constituem um importante princípio para a política e governança, devendo o Estado assumir a responsabilidade de respeitar e proteger os direitos humanos, de forma que as relações entre o Estado e seus cidadãos sejam juridicamente reguladas. Para a proteção integral dos direitos humanos [6] é necessário o equilíbrio entre as normas jurídicas e as garantias institucionais, um equilíbrio alcançado entre a proteção provida pelo Estado e a demanda por direitos expressadas por seus cidadãos.
Dentre outros fatores, uma característica fundamental para existência desse equilíbrio é um sistema legal composto por diferentes conteúdos e formas de normas jurídicas adequadas ao dinamismo e à complexidade da engenharia social dos direitos humanos em sua efetividade: princípios gerais, normas jurídicas substantivas, procedimentais, públicas, privadas, nacionais e internacionais, ou seja, constante presença e interação entre hard law e soft law.
O pensamento sistêmico reflete na estrutura do soft law, na medida em que observamos a complexidade do viver contemporâneo no tratamento de questões globais, como a preservação do meio ambiente e o aquecimento global; a intersubjetividade a partir da visão diversificada de seus interlocutores, resultando em uma visão sistêmica das situações-problema; a capacidade de adaptação e celeridade que os instrumentos da soft law apresentam aos cidadãos do mundo, acompanhando o avanço da ciência e da tecnologia em tempo real.
Se não bastasse, o soft law atende ao rompimento do tradicionalismo jurídico ao desconectar o poder e a violência das normas duras, elaborando um conjunto de regras não vinculativas e de livre adesão; ao legitimar as comunidades e reconhecer como instrumento do soft law todo conjunto normativo produzido por instituições ou grupo de pessoas reunidas para aquele dado fim; ao proporcionar mudanças no curso da história na criação e desenvolvimento de novos direitos; além de adentrar no universo do cuidado e da ética nas relações humanas, a partir de suas primeiras declarações (DUDH) e de suas orientações principiológicas que dão o tom das relações humanas locais-globais. No hard law, as máquinas podem e vão performar melhor do que humanos, já no soft law, humanos utilizarão a tecnologia para se libertarem de processos repetitivos, para se dedicarem a uma Justiça mais qualitativa e menos quantitativa, mais humana e menos burocrática.
Feitas essas considerações, entende-se que soft law significa co-criar a Justiça com os indivíduos e organizações, prevenindo relações humanas que possam se comprometer e trabalhando com conceitos de ética e moral aplicadas não só ao processo, mas ao desenho social das relações tendo como viga central o cuidado [7].
Para saber mais sobre o assunto, confira o artigo científico “soft law como paradigma emergente da sociedade contemporânea” que integra a obra recentemente lançada “Cuidado e Cidadania: Desafios e possibilidades”, coordenada pelos autores Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira e Antônio Carlos Mathias Coltro.
[1] HAOCAI, Luo; GONGDE, Song. Balance and Inbalance in Human Rights Law. In: WEI, Zhang. Human Rigths and Good Governance. Leiden: Brill Nijhoff, 2016, p. 180-196.
[2] Klabbers, Jan. The Concept of Treaty in International Law. Netherlands: Kluwer Law International, 1996, p. 157-164.
[3] DUPUY, Pierre-Marie. Soft Law and the International Law of the Environment. Michigan Journal of International Law. Lansing, v. 12, n. 2, p. 420-435, 1990. Disponível em: http://repository.law.umich.edu/mjil/vol12/iss2/4. Acesso em: 15 jan 2019.
[4] BOYLE, Alan. Soft Law in International Law-Making. In: EVANS, Malcolm. International Law. 4a ed. New York: Oxford University Press, 2014, p.118-136.
[5] GREGORIO, Fernando da Silva. Consequências sistêmicas da soft law para a devolução do direito internacional e o reforço da regulação global. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Sao Paulo, v. 95, pp. 299-309, 2016.
[6] Termo que expressa uma visão integral/sistêmica dos direitos humanos, conforme dispõem os autores ao observarem as imbricações dos aspectos que os direitos humanos representam no desenvolvimento da cidadania. No original: “The respect and protection of human rights constitutes a basic goal of legal development, and since human rigths laws lies at the ‘core’ of modern law, the failure to respect and protect rights such as civil rights, political rights, economic, social and cultural rights, rights to life and development rights induced by unbalanced human rights law will not only damage the goals of human rights protection and legal development, but also prevent citizens from achieving the development and freedom they should enjoy”. O respeito e a proteção dos direitos humanos constituem um objetivo básico do desenvolvimento legal e, como os direitos humanos estão no ‘núcleo’ do direito atual, a falha em respeitar e proteger direitos como direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, direitos à vida e direito ao desenvolvimento de direitos induzidos por normas jurídicas não apenas prejudicarão os objetivos da proteção dos direitos humanos e do desenvolvimento legal, mas também impedirão os cidadãos de alcançarem o desenvolvimento e a liberdade de que deveriam gozar (tradução nossa). In: HAOCAI, Luo; GONGDE, Song, op. cit., p. 181.
[7] FERREIRA, Juliana; MAZURKIEVWICZ, Lígia; BARBOSA, Ruth. O soft law como paradigma emergente da sociedade contemporânea. In: Pereira, Tania da Silva. Oliveira, Guilherme. Coltro, Antonio Carlos Mathias. Cuidado e Cidadania: desafios e possibilidades. Rio de Janeiro: GZ, 2019.
A peça teatral Casa da Família, indicada ao prêmio Innovare 2019, será encenada nos dias 27 e 28 de junho no Museu da Justiça, em uma parceria entre o CCMJ eo Projeto Institucional do Tribunal de Justiça. O espetáculo é uma série de três gerações que podem ser encontradas em sistemas judiciários e humanos para resolver seus conflitos. A peça faz parte do curso de Formação em Constelação de Práticas, que, a partir de 2016, em convênio com o TJRJ, faz constelações familiares na Casa da Família gratuitamente, em projeto piloto do Nupemec.
Casa da Família
Três empresas buscam o Judiciário para solucionar seus problemas. No primeiro caso, uma família está em busca da guarda da filha, que foi gestada por uma parceira com o óvulo da outra. Na segunda família, um casal vê uma filha envolvida com drogas; no terceiro caso, uma mãe procura na Justiça a atenção de seus filhos.
Roteiro de Cristina Biscaia e Ruth Barbosa, com colaboração do juiz André Tredinnick. Direção de Silvia Carvalho. Iluminação de Diogo Borges. Trilha sonora de Edom de Oliveira, com participação do músico Leandro Corin.
Serviço :
Dias 27 e 28/06, às 19h
Peça “Casa da Família”
Local: Antigo Palácio da Justiça, Sala Multiuso
Rua Dom Manuel, 29 – Centro, Rio de Janeiro – RJ Entrada Franca com Distribuição das senhas a partir das 18h30m
Em entrevista à rádio CBN o juiz André Tredinnick coordenador adjunto do projeto Casa da Família explica um pouco sobre a iniciativa que é pioneira no país. Tredinnick ressalta também, parceria com o Instituto Práxis Sistêmica e como arte e a cultura podem ser agentes transformadores.
CBN: A Casa da Família atua como um órgão mediador, como funciona isso?
Juiz Tredinnick: A Casa da Família é um projeto estratégico do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, para repensarmos a abordagem dos conflitos familiares em sentido amplo.
[…]Ter um ambiente acolhedor e humanizado, para as pessoas melhorarem sua comunicação, e elas mesmas encontrarem a melhor solução para os seus conflitos em uma mediação, em um acordo trabalhando de uma outra forma, de uma outra lógica não violenta.
CBN: Como surgiu essa iniciativa?
Juiz Tredinnick: Vem de uma longa reflexão de alguns juízes, em que vimos a insuficiência do nosso trabalho puramente formal, ou seja, só prolação da sentença, a gente vê que a maioria das vezes não resolve o problema. Por exemplo a pessoa tem que dividir uma guarda, mas vai continuar a se encontrar com seu ex cônjuge todo final de semana, a briga continua, as vezes vai parar na delegacia, vira violência doméstica e etc. Observamos que abordando de outro modo, ou seja, entendendo que aquela relação não vai se resolver só com o ato jurídico da sentença, mas que ela precisa de uma melhora na comunicação, de uma melhora no ato da abordagem, de uma melhora de percepção, a gente consegue sair desse ponto de violência, para que as pessoas consigam conversar e se entender minimamente para resolver suas vidas[…]
No projeto essa pessoa são encaminhada à Casa da Família, onde recebe uma multiplicidade de soluções (mediação, conciliação, constelação familiar ou justiça restaurativa) a partir daí encontra-se a melhor solução para aquele caso, e termina com um acordo, sem usar o sistema de justiça necessariamente.
CBN: Tem um ingrediente muito especial na Casa de família que é a Cultura:
Juiz Tredinnick: Nesse projeto que estamos desenvolvendo no Rio com o Instituto Práxis Sistêmica de Constelação Familiar, foi entendido que na formação de consteladores para atuarem junto ao poder judiciário, era fundamental a arte, como um modulo de formação qualificada, um modo de capacitação humanizada, para o diálogo, captação do entendimento, para sensibilização, que a arte no sentido amplo, como por exemplo uma peça de teatro, pudessem fazer com que as pessoas percebessem que suas relações não só únicas, são na verdade toda a sociedade. A arte é um instrumento de transformação e comunicação muito grande.
A peça chamada Casa da Família, trabalha os conflitos do dia a dia[…] A peça não traz histórias tristes, de derrotas ou fracassos, são histórias de vida, em que as pessoas verão que a humanidade mesmo em uma coisa que a pessoa nega, “ah o conflito é um problema meu, eu estou errado!”, faz parte da vida. E isso impressiona e emociona porque a gente percebe que é normal, e pode estender a mão artisticamente, e receber e trazer essa dinâmica para as pessoas de mudança de pensamento[..]
Para saber mais acompanhe a entrevista na integra:
Quer assistir ao espetáculo teatral? Basta comparecer 30 minutos antes do início do evento. Será nos dias 11, 12 e 13 de abril (19h, entrada franca). Local: Centro Cultural do Poder Judiciário (CCMJ). Rua Dom Manuel 29 – Centro
Notícia publicada por Assessoria de Imprensa em 10/12/2018
A mulher idosa entra na Justiça para ter a atenção dos filhos; um casal disputa a guarda da única filha; outro tem a filha presa por envolvimento com as drogas; e o ex-marido exige a partilha dos bens do casal mesmo tendo contribuído menos para a construção do patrimônio. O ponto de ligação entre os personagens é o projeto de mediação e conciliação Casas da Família, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio.
As histórias do cotidiano da Justiça foram apresentadas na peça “Casa da Família”, que encerrou na sexta-feira, dia 7, as atividades anuais da Associação Práxis Sistêmica, que colabora com o projeto Casas da Família, do Núcleo Permanente de Métodos e Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), do TJRJ. A apresentação foi no Museu da Justiça – Centro Cultural do Poder Judiciário (CCMJ), no antigo Palácio da Justiça, no Centro do Rio.
“Através da arte que emociona, a peça aborda os dilemas familiares e novos olhares para as soluções mais humanizadas. A Constelação Familiar, assim como a mediação e a conciliação, revela-se uma abordagem emancipatória em que as partes assumem o protagonismo na construção resolutiva do conflito. A prática da Constelação familiar está prevista no ato normativo TJRJ nº 14/2017 que criou as Casas da Família e vem sendo aplicada nos fóruns de Santa Cruz e Leopoldina”, explica a juíza Mylène Vassal, da 3ª Vara de Família Regional de Santa Cruz e coordenada da Casa de Família daquele bairro, na Zona Oeste do Rio.
Escrita por Cristina Biscaia, com colaboração do juiz André Tredinnick, e dirigida por Silvia de Carvalho da Cruz, a peça apresenta as relações de diferentes formações familiares, seus desentendimentos e falta de comunicação. São diversos núcleos familiares com suas questões humanas que buscam resolver seus conflitos. Os atores são alunos do curso da Práxis, de formação em Constelação Familiar, que é uma técnica terapêutica na qual pessoas são colocadas como representantes de familiares a fim de desvelar dinâmicas do sistema familiar.
“A arte permite criar e desvelar potencialidades em cada um de nós. E criar um novo olhar e novas ações para que o mundo tenha como função principal o acolhimento de todos”, explica Ruth Barbosa, presidente da Práxis Sistêmica. “A peça teatral tem por objetivo divulgar a Casa da Família, nova estrutura que surge na Justiça com olhar mais humano e cuidador”, afirma.
O espetáculo volta em cartaz no mês de Abril, dias 11, 12 e 13 de abril, no Centro Cultural do Poder Judiciário. Você é nosso convidado Rua Dom Manuel 29 – Centro. 19h, entrada franca.
Valorizar a conciliação e a mediação, evitar a judicialização, principalmente na área da família. Essa é a proposta da Casa da Família, desenvolvida pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec). O objetivo da iniciativa é encontrar solução para os conflitos familiares sem a necessidade de haver um processo judicial.
O presidente do Nupemec, desembargador César Cury, disse que o índice de resultados positivos nas mediações entre casais em processo de separação chegou a 96%. As primeiras unidades da Casa da Família começaram a funcionar no fim do ano passado nos fóruns de Bangu, Santa Cruz e Leopoldina. A intenção é expandir este ano por vários pontos do estado.
De acordo com o magistrado, a Casa da Família é fruto de inspiração de várias fontes, principalmente na observação de situações que têm surgido na sociedade contemporânea. Segundo ele, um casal mesmo depois de separado acaba voltando à Justiça várias vezes com novas ações, para discutir a pensão alimentícia, a guarda dos filhos, visitação e intercorrências. O desembargador tem planos para ampliar a atuação da Casa da Família em todas as questões familiares.
Como surgiu a Casa da Família?
Des. Cesar Cury: A Casa da Família começou no fim do ano passado com o objetivo de reunir pais que estão separados para que os processos de divórcio, de pensão alimentícia, transcorram sem traumas aos familiares. Ela foi pensada para tratar das questões relacionadas às famílias sem os inconvenientes do processo, de modo mais adequado e com segurança. Em muitos casos, casais desistiram dos processos na Justiça, outros não voltaram com novas ações e grande parte não precisou entrar com processo para discutir a separação.
A iniciativa teve aprovação no Judiciário?
Cesar Cury: Sim. Fizemos um projeto piloto durante um ano e oito meses em lugares diferentes com juízes comprometidos, preparados, conscientes de que todas as questões de família passavam por uma triagem para depois passar pela mediação. A segunda fase nos mostrou um êxito extraordinário. O projeto então se tornou mais estruturado e no final do ano passado instalamos as três Casas da Família.
De que forma essa iniciativa permite a solução de um conflito fora do processo judicial?
Cesar Cury: Na sociedade moderna, os casais enfrentam situações peculiares, em que nem sempre é possível alcançar resultado numa ação judicial. A Casa da Família oferece um ambiente em que são auxiliadas a encontrar caminhos e soluções para os seus conflitos. Tratar isso dentro de um processo traz os inconvenientes do processo. Tratar isso na Casa da Família significa deixar o processo de lado sem deixar a formalidade de lado e tratar as questões verdadeiramente importantes para as partes.
O que há na Casa da Família que promove esse diálogo entre as partes?
Cesar Cury: Ela tem atendimento multidisciplinar, serviço administrativo e de identificação. A abordagem seguinte é feita por assistentes sociais e psicólogos que promovem o diálogo. A partir desse momento, o problema e os interesses são identificados e as partes são encaminhadas num processo de triagem para uma série de serviços que oferecemos, pertinentes a cada tipo de questão. Eles consistem em oficinas, dinâmicas, palestras e mediação. A ideia é ter o entrosamento para melhor aproveitamento desses recursos.
A técnica da constelação familiar está presente na Casa da Família. Do quê se trata?
Cesar Cury: A constelação familiar é um dos serviços que oferecemos. A técnica consiste em identificar nas relações focos de problemas que tendem a se repetir como padrões. Uma vez que isso seja identificado, conseguimos ter melhor abordagem para o problema e resolvê-lo definitivamente. A metodologia é absolutamente indicada, válida e legítima. Mas não está isolada. Temos outros serviços, em paralelo, que funcionam de acordo com a tipologia de cada caso. Alguns de divórcio em função de homens em episódios de violência, inclusive com a rede pública em convênio para que questões subliminares sejam tratadas e não se tornem recorrentes.
Quem não se sentir à vontade pode procurar um cartório com um processo?
Cesar Cury: Sim. A judicialização fica preservada. As partes podem garantir uma tutela de urgência e em um momento seguinte se voltar por um tratamento mais consensual. O juiz está ali como provedor final. Isso significa que as partes devem investir em tentativas de resolução com a presença do juiz. Ele não deve ser usado para tudo e para qualquer coisa num primeiro momento. Mas sempre que a sociedade precisar, ela terá um juiz pronto para dar a resposta do Estado.
A entrevista do desembargador foi ao ar no programa “TJ Entrevista”, produzido pela Assessoria de Comunicação do TJRJ e está na página oficial do Tribunal no Facebook.
“Judiciário exerce poder autoritário na sociedade sem promover pacificação”
No Fórum Regional da Leopoldina, na zona norte do Rio de Janeiro, o juiz André Tredinnick aplica uma técnica alternativa para resolver conflitos como partilha de bens em um divórcio e disputa pela guarda de filho: a constelação familiar.
Nessa técnica, as partes recriam suas relações por meio de representações, que podem ser feitas por bonecos ou por outras pessoas. A ideia é que os litigantes compreendam a origem de seus desentendimentos e busquem encontrar uma saída amigável para a questão. A prática vem se mostrando eficaz: dados preliminares apontam que 86% dos processos submetidos a ela acabam em acordo.
Criada pelo alemão Bert Hellinger, sob inspiração da cultura zulu, a constelação familiar foi trazida para o Judiciário brasileiro em 2012 pelo juiz Sami Storch, que atua no interior da Bahia. Após assistir a uma palestra do magistrado, Tredinnick — que é titular da 1ª Vara de Família de Leopoldina — decidiu aplicá-la no Rio. Para isso, montou uma equipe de especialistas no assunto, que conduzem as sessões.
Agora, ele, em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, vem sistematizando os resultados da técnica, de forma a aprimorá-la e torná-la política pública. No momento, o método é empregado em 15 estados do país.
O juiz do Rio acredita que o Judiciário não promove pacificação social, pois é uma força autoritária, imposta de cima para baixo. Para melhorar o sistema, ele defende métodos que promovem autocomposição, a democratização da Justiça (com eleições diretas para presidentes de tribunais) e uma maior participação da sociedade na definição de políticas públicas.
Leia a entrevista:
ConJur — Como funciona o método da constelação familiar?
André Tredinnick— O método funciona como uma dinâmica vivencial. As pessoas trazem uma questão e o constelador organiza essa dinâmica, fazer a vivência ocorrer. Por exemplo, se ele trabalhar com o método de pessoas, vai colocar indivíduos representado a questão que o “cliente” trouxe, a partir da vivência dele. Outro método representa a situação com bonecos. O criador da técnica, o alemão Bert Hellinger, criou as duas fórmulas, uma com pessoas e outra com bonecos. Temos usado as duas técnicas no fórum. Particularmente, prefiro a com pessoas, pois penso que, nela, a vivência é mais intensa. Já os bonecos nós usamos mais em sessões individuais ou com crianças. Às vezes, é mais fácil a criança falar alguma coisa por meio dos bonecos.
ConJur — Em que tipo de situação a constelação familiar pode ser aplicada?
André Tredinnick— Um exemplo extremo: em um conflito familiar, quando as partes não sentam uma de frente para a outra, se sentam de lado. Não há comunicação eficaz. Mas aí mandamos as partes para a constelação familiar. Após esse processo, quando elas voltam, conseguem se olhar nos olhos, sentar frente a frente. É impressionante. Estamos analisando o impacto da constelação familiar, mas a impressão é que a falta de comunicação começa a se alterar já de primeira. É estranhíssimo, porque parece que dá uma maturidade às pessoas ou abre seus corações. Em um caso, o pai de uma criança morreu, e a mãe e a avó paterna disputavam a guarda do neto. A avó associava a criança ao pai. Quando fizemos a constelação familiar com bonecos, a criança conseguiu mostrar para a avó algo que ela nunca tinha falado: que adorava a avó, mas queria morar com a mãe. A avó, então, chorou muito, não entendeu nada, sua defensora alegou que a técnica não prestava. Mas ela sentiu. Depois de um tempo, em nova audiência, a avó disse que conseguiu ver que a criança queria ficar com a mãe. É muito impressionante. Nós temos uma serie de argumentações jurídicas, mas a parte raciocinou, percebeu que a criança tem uma vontade, uma opinião, conseguiu ter a empatia de olhar para ela e entender o que seria melhor para sua vida, superando o buraco emocional da morte de seu filho.
ConJur — Isso é mais eficaz do que a dinâmica regular do processo?
André Tredinnick— É incrível e emblemático poder sair um pouco partir para uma nova dinâmica independente do curso do processo. Um casal, ele músico, ela produtora musical, se separou quando ele começava a fazer sucesso. Ela se sentia muito prejudicada na partilha de bens, porque ele, mesmo não se divorciando, já se separa de fato. Eles estavam disputando patrimônio. Então nós propusemos a constelação. Após fazerem duas dinâmicas ao longo de um mês, eles já conseguem se sentar frente a frente, já conseguem conversar sobre as relações de filhos, excluíram o tom de voz mais alto, os socos na mesa, aquela violência da discussão. Eles conseguiram desvincular a emoção do processo, criaram uma dinâmica comunicativa.
ConJur — Uma constelação familiar bem-sucedida é a que termina em acordo?
André Tredinnick— Não necessariamente. No tribunal, nós temos essa ótica: o sucesso é medido pelo fato de ter havido acordo ou não. Mas nem sempre isso quer dizer que a técnica foi bem-sucedida, porque às vezes as pessoas descolam o litigio da relação e passam a aceitar melhor as consequências de uma decisão judicial.
ConJur — O senhor poderia explicar o passo a passo da constelação familiar em uma disputa de guarda de menor, por exemplo?
André Tredinnick— A petição inicial é apresentada e começa o processo. A primeira coisa que fazemos é marcar uma oficina de parentalidade. O Conselho Nacional de Justiça recomenda essa prática em varas de Família, baseado no novo Código de Processo Civil, que tem um procedimento processual de próprio para casos de família. É reconhecida a particularidade do conflito de família. Na minha opinião, é um dos conflitos mais difíceis que existem, por conta da relação continuada e das emoções envolvidas. Assim, ao iniciar o processo, o juiz deve tentar a autocomposição das partes, intervindo de forma mínima. Deriva daí o convite que é feito as partes para aderir ou não à oficina de parentalidade.
Nisso, o juiz explica sumariamente para as partes como funciona o processo, que é uma dinâmica vivencial, na qual se pode vislumbrar o conflito, que não tem nada a ver com religião, psicoterapia, reencarnação. É feita uma limpeza das ideias equivocadas que podem existir sobre isso. Se a pessoa adere, é marcada imediatamente uma sessão próxima — temos a preocupação de que essas práticas não ultrapassem 60 dias. É feita uma dinâmica, então, em que se juntam varias partes, com vários processos diferentes. Aí, sim, há uma explicação mais detalhada de como vai ser a técnica para quem quiser permanecer, ou seja, quem já aderiu voluntariamente. Tem pessoas que não querem, querem o julgamento e saem da sala. Nesses casos, marcamos então a audiência de mediação ou de conciliação, e, se não houver acordo, procedemos ao julgamento.
Quem fica recebe uma explicação mais detalhada. Aí começam os convites de quem quer fazer a sua interpretação. A primeira dinâmica é das pessoas com os pais. Assim, a pessoa deve escolher duas pessoas que vão representar o seu pai e a sua mãe. Não é dito nada – ela deve sentir sua relação com o pai e com a mãe. Não é propriamente constelação, é uma técnica de entrada para a pessoa começa a abrir suas emoções, começa a deixar vazar a percepção, a autopercepção. Terminada essa dinâmica em que todos participam, as pessoas voltam aos seus lugares em círculo. Em seguida, pergunta-se se alguém quer representar um caso. Por exemplo, o sujeito está disputando a guarda do filho com sua ex-mulher. Daí perguntam-lhe quem ele quer colocar na cena. Sua ex-mulher? Seu pai? O filho? Um amigo? Aí vão colocando esses “personagens” e fica possível visualizar a cena.
ConJur — Quem coloca esses “personagens”?
André Tredinnick— É o constelador, a equipe que trabalha voluntariamente no fórum. O pioneiro da constelação no Brasil, Sami Storch, um juiz do interior da Bahia, estudou com o Bert Helinger na Alemanha e organiza a técnica em seus processos. Quando ele veio ao Rio fazer um seminário sobre o assunto, fui procurar uma equipe que se chama Praxis. São consteladores que estudaram com a Virginia Satir, outra referência nos EUA sobre constelação, com o próprio Bert. Conversando com eles, eu sugeri aplicarmos a constelação no tribunal. Mas como não sou constelador e o Rio de Janeiro é uma comarca com mais recursos, preferi deixar o método na mão de técnicos. A princípio, imitamos a técnica do Sami Storch. Mas nós entendemos que o processo tinha que ser documentado todos os sentidos — fotos, entrevistas, gravações, dados. Agora estamos na fase de acompanhamento, de ver como os processos submetidos à constelação ficaram após um tempo. E temos visto que as pessoas não voltam à Justiça.
ConJur — E o que ocorre após escolherem quem representará os “personagens”?
André Tredinnick— Tem início a constelação. Aí as pessoas visualizam o conflito. Às vezes elas sentem vontade de representar, para experimentar as emoções dos outros. Aí experimentam representar o pai, a mãe, experimentam sensações que não são delas. E ficam muito impressionadas, se emocionam muito. Quando termina uma representação de um caso, elas retornam a seus lugares. Daí se faz uma segunda, às vezes uma terceira representação. Caso seja detectada uma dificuldade naquele momento, se marca uma sessão individual própria daquela família, daquele caso, daquela dinâmica, que nunca é o caso em si. Nunca é, por exemplo, quem bateu na criança foi fulano. Não é isso, a pergunta nunca é essa. Geralmente a própria família da pessoa entendeu a sua dinâmica anterior, que levou àquele conflito. Esse é o objetivo. Quando essa etapa acaba, as partes saem com a data da audiência de autocomposição. É o primeiro ato processual propriamente dito. Nela, se as partes chegam a um acordo, eu o homologo; se não, eu julgo.
ConJur — O juiz — o senhor — está presente em todos os atos da constelação familiar?
André Tredinnick— Não. Geralmente, eu gosto que as partes fiquem independentes, autônomas. Desde o início, a minha preocupação era não personalizar essa prática. Já vi várias inciativas inteligentíssimas e superinteressantes virarem lixo porque personalizam a pessoa, o juiz que a inventou, e quando ele se aposenta muda de carreira, ela é interrompida. O caminho, para mim, é tornar a prática uma política pública. Nós pensamos em apresentar uma ideia de formação de técnicos ou psicólogos pelo próprio Tribunal de Justiça. Então, eu prefiro não participar. No máximo, eu faço uma abertura, uma explicação. As partes gostam porque se sentem seguras.
ConJur — Há conflitos familiares para os quais a constelação é mais eficaz? E há situações em que ela é menos eficaz?
André Tredinnick— Não. O que posso dizer é que quando os dois aceitam fazer a constelação, a eficácia é maior; quando um não vem, a eficácia é menor.
ConJur — Quais são os limites da constelação?
André Tredinnick— A constelação não pode violar direitos fundamentais, como a liberdade de crença e de não crença. O espaço público não pode contemplar nenhum tipo de manifestação religiosa. Laicismo é um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Essa é a minha maior preocupação. Para o nosso público, às a pessoa querer abrir com uma música já implica uma rejeição da técnica. Em um caso, uma terapeuta colocou uma música xamânica. Mas para alguns evangélicos, por exemplo, a canção parecia profana, e eles saíram da sala. Então, não dá para usar música. Incenso é outra coisa que gera rejeição, então é proibido. É preciso ter sutileza para respeitar todas as visões.
ConJur — Qual é a formação dos profissionais que conduzem a constelação familiar no tribunal?
André Tredinnick— As pessoas que a praticam deve ter uma formação extensa, cursos de, no mínimo, dois anos, com uma supervisão constante. Justamente porque não tem uma formulação, queremos que o indivíduo tenha um mínimo de bagagem para fazer isso. Essa é uma exigência minha, para trabalharmos com pessoas com formação conhecida e reconhecida. Não basta ser uma pessoa legal, que faz o trabalho direito. Também é importante que não haja nenhum tipo de julgamento, nenhuma relação com o processo. A prática não tem que induzir, recomendar ou sugerir nada relacionado ao processo. A relação é familiar, é dinâmica, é da vida, da experiência daquela pessoa, não tem nada a ver com o processo.
ConJur — Como advogados encaram a constelação familiar?
André Tredinnick— Usa-se muito a técnica em escritórios de advocacia. Tem advogados consteladores que logo propõem ao cliente fazer uma dinâmica, para ele entrar na causa mais com mais autopercepção. Advogados que fazem isso dizem que muda completamente a relação. Às vezes a pessoa até desiste de entrar com o processo, o que parece uma coisa contraditória para o advogado, né? Mas acho que o advogado percebe que o seu trabalho não é só entrar com o processo — até porque o sistema está sobrecarregado.
É preciso que nós deixemos de nos apegar a soluções autoritárias: ao estabelecermos que um juiz sempre sabe o que é melhor para uma família, para um réu ou para as partes em uma disputa de bens, estamos destruindo a possibilidade de convívio social. Temos que ter autocritica e continuar garantindo o Estado Democrático de Direito, mas não negando às pessoas o direito de autocompreensão, de autocomposição, que democratiza o processo. O Judiciário tem que ser radialmente democratizado. E não só internamente, mas também assegurando que as pessoas sejam realmente ouvidas. As pessoas têm direito de se manifestar e não serem robôs de uma causa.
ConJur — Há dados que mostrem a eficácia do método?
André Tredinnick— Fizemos uma contagem provisória e chegamos a um percentual de acordo em 86% dos casos. Mas veja: acordo não quer dizer nem sucesso nem fracasso, porque ele pode não ser cumprido, pode haver não acordos em que as pessoas mudaram a dinâmica de relação. Temos trabalhado com o parâmetro mais comum, que é do Conselho Nacional de Justiça, que considera acordo o que encerra o processo. Nós agora vamos confrontar esse dado com os depoimentos e com a evolução do caso — ou seja, se houve reincidência, se houve medida para cumprir o acordo, se houve uma alegação de alienação parental posterior ao acordo. Mas os dados preliminares indicam que o percentual de acordos subiu de 50%, 60%, para 86% após a constelação familiar começar a ser aplicada.
ConJur — O Novo Código de Processo Civil colocou uma grande ênfase na mediação e na conciliação. A seu ver, esse é o melhor caminho para desafogar o Judiciário e para melhorar a resolução de conflitos?
André Tredinnick— Eu tenho um problema com a questão de desafogar o Judiciário. Penso que o Judiciário inunda a sociedade, e não o contrário. O Judiciário cria espaços de totalidade, ele quer abraçar tudo. Por exemplo, o Juizado Especial Cível era uma grande sacada para as causas de menos complexidade. Em razão da lentidão, do fracasso, do tecnicismo e do bizantismo do Judiciário, buscou-se simplificar o rito. Mas o JEC uma inundação na sociedade, ele abarcou conflitos que eram resolvidos de outra forma. É uma grande loucura que no novo código tenha havido uma grande disputa para abranger outras questões familiares, como por exemplo, escolha de escola do filho. Isso para mim é inundação do Judiciário. Ele se expande antidemocraticamente pelo tecido social. E não é o caminho, porque não há pacificação social no Judiciário. Isso é impossível. O Judiciário é força, ele exerce um poder vertical e autoritário na sociedade. Ele deve ser exceção, não regra. Não tem solução judicial em que a pessoa saia satisfeita. Não existe a ideia de que “a Justiça foi feita”. Fora que isso acaba elitizando a Justiça. Com essa super expansão do sistema, só quem tem poder econômico ou político consegue transitar rapidamente pelo sistema.
No mais, a massa vai enfrentar o sistema mecanizado da Justiça. E para consertar essa doença da expansão, usamos critérios de produtividade do toyotismo, do fordismo, iguais aos usados por empresas privadas. Isso é muito perigoso, porque aumenta a mecanização, aumenta terceirização, muda a pessoa que produz as decisões, e aumentam os erros. E não é isso o que pretendemos. Temos técnicos recrutados da sociedade, muito bem pagos, que devem fazer seu trabalho com qualidade e personalização, no momento de sua intervenção para a garantia do Estado Democrático de Direito, mas não abarcando a totalidade da realidade. Isso é muito grave e antidemocrático.
ConJur — E como melhorar esse sistema?
André Tredinnick— Se eu for falar em sonho, seria pela radicalização democrática do Judiciário, com controle social da atividade judicial. Isso não significa tribunais de exceção, tribunais populares, significa participação social. Por exemplo, a aplicação da constelação familiar. A lei permite, nós apresentamos os dados que mostram sua eficácia. Mas qual é a opinião da sociedade sobre isso? Eu não sei, porque tenho que me dirigir a uma cúpula que está presa a uma ideia de produtividade pelo juiz. Então, a primeira questão é a democratização radical de dentro do Judiciário, com eleições diretas para eleger a cúpula, e ouvir a sociedade quanto a políticas públicas. E também criar canais para se drenar esse maremoto, para que o Judiciário não seja a única solução possível. Assim, poderíamos conferir mais poder para o Procon, mais alternativas de resolução de conflitos em câmaras coletivas, mais foco em justiça restaurativa.
ConJur — Os advogados entenderam essa guinada em prol da resolução consensual de conflitos ou continuam presos a uma mentalidade litigiosa?
André Tredinnick— A mentalidade dos advogados é totalmente litigiosa. Nós somos formados pela faculdade para brigar, para entrar com uma ação e ganhar a ação. E a gente despeja por ano milhares de advogados no sistema. Para pagar suas contas, o advogado vai ser criativo, vai aumentar o litígio. Então quando você chama um advogado para uma mediação, ele acha que está perdendo dinheiro. Um dos maiores esforços nossos é convencer juízes de que eles não estão perdendo poder com as resoluções alternativas de conflitos, e advogados, de que eles podem ganhar dinheiro com isso, de que eles podem cobrar para fazer a mediação, a conciliação.
ConJur — A constelação familiar pode ser aplicada a conflitos de outras áreas do Direito?
André Tredinnick— Sim. Eu gostaria de experimentar essa solução para Juizados Especiais Criminais, onde há ofensas de menor importância. Por exemplo, a experiência do juizado do Leblon (zona sul do Rio), que é um bairro rico, mostra muitas brigas em condomínios que acabam em crimes contra a honra, ameaça, lesão corporal. É uma questão puramente de ausência de contato com as emoções. Essa uma dinâmica que poderia ser experimentada lá com muita clareza. No outro extremo, o juizado criminal acaba criminalizando condutas banais de pessoas humildes. Sem recursos de defesa, eles começam a experimentar o sistema criminal, que é extremamente segregatório – uma mácula dessa o indivíduo está fora do sistema funcional, não trabalha em lugar nenhum. Brigas familiares também poderiam ser humanizadas com a aplicação da constelação familiar. O método poderia ser usado em disputa de empresa familiar, disputa possessória envolvendo vizinhos que são parentes. O Ministério Público ainda poderia fazer aplicar a técnica com questões de idosos, por exemplo, da administração de bens de idoso.
ConJur — A aplicação da constelação familiar na área criminal poderia ajudar a diminuir a reincidência?
André Tredinnick— Tenho muita confiança que sim. A dinâmica que leva a não consegui falar com o ex-cônjuge, que leva a agredir um filho, que leva a brigar com um vizinho é a dinâmica que leva a cometer um crime. Basta ver o impacto dos projetos de justiça restaurativa.
ConJur — Qual é a diferença entre a Justiça restaurativa e a constelação familiar?
André Tredinnick— A Justiça restaurativa é outro sistema. Nela, não existe a figura do juiz, não existe um processo com a dinâmica de parte, autor e réu. Existe a dinâmica de construção da solução. O indivíduo não é o indivíduo que vai ser punido pelo Estado, é o indivíduo que cometeu algo reprovável em razão de uma pessoa — a subtração de um bem, um ato de violência que ele tem — e que deve reconhecer seu ato. Um exemplo de um livro dos EUA: um moleque roubou o carro do vizinho. Em vez de levar o caso para a Justiça, a vítima levou para a igreja local, onde promoveram uma reunião.
Nela, o garoto ouviu a vítima falar que tinha ficado muito chateada com o episódio, pois encontrou o carro com o vidro quebrado e ainda nem tinha acabado de pagá-lo. Envergonhados, os pais do garoto arranjaram um emprego num parente. A partir daí, o garoto se comprometeu a pagar em um certo número de parcelas o dano que causou, e a vítima aceitou as desculpas. Tem uma coisa muito interessante nisso: as vítimas do crime não são ouvidas, não querem saber o que elas sentiram. Só querem saber se o suspeito praticou ou não o crime. E aí o trem vai andando inexoravelmente para um ponto — o ponto da condenação. A Justiça restaurativa é algo incrível. Nós, que fazemos Justiça restaurativa, gostamos muitas vezes de entrar com a constelação familiar nela antes de começar o círculo, para a pessoa ter essa autopercepção da sua dinâmica — o que a levou a isso e, sobretudo, a humanização de sentir o outro, olhar no olho do outro. Não no sentido bíblico de culpa, mas no sentido de humanização: “olha, foi legal fazer aquilo, eu me senti transgressor, mas tem uma consequência: alguém ficou chateado, alguém foi prejudicado”. Em casos mais graves, que geraram lesão permanente, o efeito é impressionante.
Colocar um agressor de mulheres diante de uma vítima que perdeu o olho pelos ferimentos tem uma totalidade poderosa. Não é uma coisa romântica de perdoar, de se culpar. Não, é a percepção do humano. É isso que falta no sistema tradicional. Nós supostamente tornamos tudo científico, mas não resolvemos nada, porque o índice de reincidência nosso é abissal, nossa população carcerária é uma das maiores do mundo.