No mito, Sísifo foi condenado a carregar uma pedra até o cume de uma montanha e, quando estava para completar o seu dever, a pedra sempre rola ao pé da montanha, e Sísifo tem de reiniciar a tarefa novamente, por toda a eternidade.
Quem foi Sísifo na mitologia grega, o que nos informa a tradição sobre esse personagem e porque foi dessa forma punido? Precisamos assim retornar às fontes originárias, na tentativa de compreender essa representação.
Em uma das mais antigas representações do Mito de Sísifo, Rei de Corinto e o mais astucioso dos homens(1), ele se encontra no mundo dos mortos, observado por Perséfone em seu palácio no Tártaro, carregando em suas mãos uma pedra gigantesca da base de uma montanha em direção ao cume (Ânfora, VI A.C.).
Várias são as versões que explicam porque Sísifo teve essa sorte. Em uma delas teria até usado de astúcia para descobrir que Autólicos era um ladrão de gado. Esse ladrão ardiloso roubava o gado e o transformava, de modo que o proprietário não podia mais reconhecê-los no dia seguinte. Sísifo, contudo, marcou os animais nos cascos. Na outra, enviado ao Tártaro por desobedecer Zeus, enganou a morte personificada em Tânatos. Elogiou sua beleza e com isso a convenceu a aceitar um colar, que na verdade era uma coleira, o que aprisionou a morte, impedindo que as pessoas morressem. Hades não admitiu essa situação e libertou Tânatos e enviou Sísifo para o mundo dos mortos. Porém, Sísifo pediu à esposa para não sepultá-lo e com isso convenceu Hades a deixá-lo voltar para o mundo dos vivos por um dia para providenciar seu enterro. Quando retornou, fugiu com sua esposa. Acabou capturado por Zeus.
Por esses fatos desses recebeu a conhecida pena eterna.
Mas diante dessas versões do Mito de Sísifo, apenas nas Fábulas de Caio Júlio Higino vemos que a tragédia familiar foi a causa de sua sorte no Hades(2).
Nessa obra(3), os filhos de Éolo, os irmãos Sísifo e Salmoneu possuíam rivalidade tal que se tornaram inimigos odientes. Sísifo perguntou ao oráculo de Delfos, como poderia eliminar o irmão. Interpretando a vontade de Apolo, o oráculo lhe disse que, se violentasse Tiro, filha de seu irmão Salmoneu, e tivesse filhos com ela, eles seriam seus vingadores. Sísifo perpetra o ignóbil crime e Tiro engravida de gêmeos. Nascidas as crianças, a mãe, sabedora da maldição, as mata.
O que aconteceu com Sísifo? Nessa interpretação devemos ter cuidado com as “aproximações” da patrística na interpretação dos termos: “Mas, quando Sísifo descobriu (…) Diz-se que agora, devido à sua impiedade (4), nas regiões inferiores (5) rola com os ombros uma pedra monte acima, e que, quando a conduz até o extremo cume, em seguida ela rola novamente para baixo, às suas costas”(6). Essa pedra, que HOMERO lembra ser monstruosa (7) – (Odisseia, Canto XI, 593-4), não é empurrada, mas carregada nos ombros de Sísifo morro acima, num esforço eterno, porém inútil.
Nas palavras de CAMUS: “Ils avaient pensé avec quelque raison qu’il n’est pas de punition plus terrible que letravail inutile et sanses poir.”(8). Não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
Na verdade, para Camus, existencialista, Sísifo teria decidido compreender que não se encontrava em uma expiação, mas que se colocava por vontade própria naquele esforço, por não aceitar a lei dos deuses, e por sua iniciativa decidiu encenar aquele trabalho repetitivo e eterno; assim, seria livre. “Diante do absurdo devemos, de alguma forma metafórica, nos revoltar. A “revolta” é a consciência de nossa condição, mas sem a resignação”(9).
Essa violência familiar indica a representação dos arquétipos da Hýbris(10), do excesso e da desmedida, e da Dike, do equilíbrio da natureza cíclica. Píndaro(11) alertava que a presença da deusa da desmedida era causa da ruína da cidade.
Essa foi a (hýbris) de Sísifo, termo do grego arcaico que indica sua afronta ou impertinência, ou comumente o uso intencional da violência para humilhar ou degradar, que o coloca no sentido trágico da existência. anota Alves, com apoio a Boriaud(12) somente Higino, apresenta essa versão do fundamento do castigo de Sísifo. Não a mais divulgada, a de ter revelado o segredo dos deuses. Nem sempre, no conceito de hybris, há o excesso na tentativa de igualar-se o homem aos deuses, ultrapassando o metron, usurpando-lhes as potências ou segredos.
A ideia de pretender ser o que não se é, uma pulsão não de superação, mas de ter-se mais potente do que se é, essa ausência de reflexão autocrítica, incita os humanos a violar a ordem cósmica, onde se inserem os deuses(13). A hybris ameaça revirar a ordem bela e justa do mundo, e é contra essa violação do bem ordenado kosmos que a hybris exige o reequilíbrio do todo, não pela culpa do que se tomou dela, mas para manter “respeito e preocupação com o mundo”(14).
Em determinada medida, se todos os esforços para solucionar uma questão indicam que o problema na verdade é maximizado pelas soluções apresentadas, impõe a inteligênciam mediana que a questão seja analisada por outra perspectiva, buscando uma solução diversa daquela até então empregada, sem resultado.
Para saber mais sobre o assunto, confira o livro “Conversando sobre Constelação Familiar na Justiça.”, coordenada pelos autores André Tredinnick e Juliana Lopes Ferreira e publicada pela Empório do Direito, editora Tirant Lo Blanch, lançada no dia 03 de outubro de 2019.
Notas e Referências
1. Ilíada, IV, 154. Mas Eurípedes, Medeia, 364: “Astuto e famoso por truques inescrupulosos”. In: HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. 2 v. São Paulo: Arx, 2003
2. ROSE, H. J. An Unrecognized Fragment of Hyginus, Fabvlae. The Classical Quarterly, 1929, vol. 23, nº. 2, p. 9-99.
3. Ibidem, Fabulae 239.
4. Não como a “falsa adoração aos deuses”, como “impietatem, id est, divini cultus prevaricationem”, negação do termo augustiniano.
5. “Apud inferos”, “entre os mortos”, ou, por metonímia, “mundo inferior”, como em Cícero, Tusc., 1.5.10.
6. Utilizamos as traduções de ALVES e GRANT.
7. HOMERO. Odisseia. Tradução de Odorico Mendes; org. Antônio Medina Rodrigues, pref. Haroldo de Campos. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 2000, p. 593-594.
8. CAMUS, Albert. Le Mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, second, expanded edition, 1945, p. 301.
9. Ibidem. Grifos acrescidos.
10. Baquílides, na tradução de MELLO (2012):
“Ó troianos diletos-de-Ares
Zeus [que governa do alt]o e tudo vê
não é o responsável pelas grandes dores humanas
mas em [mei]o a todos os homens jaz a chance de
alcançar a reta justiça, companheira do sagrado
Bom Governo (Eunomia) e das prudentes Leis (Themis);
os f[ilhos] dos afortunados com ela escolhem conviver.
Mas a destemida Húbris, que
com variados truques e desatinos
ilícitos vicejando, riquez[a] e poder de um
num instante entrega a outro
para depois enviá-lo à profunda ruína,
aque]la até os arrogantes filhos
da Terra], os Gigantes, destruiu”.
“Ode 15. Ditirambo 1 de Baquílides. The Poems and Fragments. Cambridge University Press. 1905. Odes. 1991. The Annenberg CPB/Project provided support for entering this text. Bacchylides The Annenberg CPB/Project provided support for entering this text.” In: In: MELLO, M. Os ditirambos de Baquílides: um poeta entre dois mundos. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
11. “Hybris (insolência) é a ruína das cidades… Nunca pode a vergonhosa Hybris facção trazer em seu séquito e aproveitar a companhia dos cidadãos, quando eles se esqueceram de sua coragem.” Tradução do próprio autor. In: In: SANDYS, John. The odes of Pindar including the principal fragments. London: William Heinmann. New York: The Macmillan Co., 1915, p. 151.
12. É notável a singularidade dessa versão da causa do castigo de Sísifo, transmitida apenas por Higino nesta fábula, cf. Boriaud (1997, p. 53 nota ad loc.): “Este episódio é transmitido apenas por Higino” (“Cet épisode est donné par le seul Hygin”). Hoyo e Ruiz (2009, p. 145 nota 325) sugerem a possibilidade de se derivar de algum texto teatral. Na versão mais conhecida, o crime de Sísifo teria sido revelar a Asopo quem havia raptado a filha deste, Egina (Ésquilo, frag. 225-234; Apol. Bibl. I. 9, 4; Paus. II. 5. 1); ou, ainda, ter revelado os segredos dos deuses (Serv. A. En. VI, 616). Cf. ainda Rose (1963:42-48). É nesse esforço inútil, resultado dessa desmedida, antinatural, de pretender solucionar de modo unificado todos os conflitos, que surge a hýbris do Poder Judiciário brasileiro.
13. FERRY, LUC. A Sabedoria dos Mitos Gregos. São Paulo: Saraiva, 2009.
14. Idibem, p. 171.
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