SOFT LAW COMO NOVO PARADIGMA JURÍDICO

Comumente o termo soft law é conhecido no âmbito do direito internacional para se referir à flexibilidade pela qual os Estados negociam e se organizam através de resoluções, códigos de conduta ou recomendações não equiparadas ao direito formal hierarquizado e sancionador [1]. Sem tradução precisa para o português, seu significado se aproxima a “direito flexível”, um contraponto às normas duras do hard law.

Utilizado com reservas, soft law ainda é um marco jurídico negado por alguns autores como Prosper Weil ao afirmar sobre o conteúdo vago e a forma indefinida do soft law, considerando-o uma falácia por não existirem outras compreensões além do direito/não direito. Para Jan Klabbers, o soft law deve ser descartado por inconsistências em sua origem e por não se constituir em práticas jurídicas ou estatais consolidadas [2].

Há mais críticas a respeito do soft law. Desde a excessiva liderança anglo-saxônica à legitimidade no processo de elaboração das regras (pode ser realizado qualquer grupo de pessoas – organizações governamentais ou não governamentais, instituições, associações), embora a adesão ao documento seja o fator determinante para consolidação de sua legitimidade.

A maioria dos questionamentos foram superados e cederam espaços para novas divergências: se hard law e soft law são complementares ou antagônicos, se soft law pode ser considerado uma das fontes do direito internacional ou um elemento que compõe o processo de criação das normas, dentre outros. Embora exista uma miríade de significados sobre soft law, certo é que não há dúvidas sobre sua existência e permanência no universo jurídico.

Um dos pais fundadores do termo soft law, Dupuy atribui-lhe caráter de fenômeno social, afirmando que representa uma criação normativa contemporânea, não unicamente relacionado ao ramo do direito internacional, mas estudado a partir dele por surgir nas mudanças estruturais das relações entre os Estados, após a II Guerra Mundial [3].

Dentre as razões para esse acontecimento encontram-se a criação e ampliação de organizações não governamentais (locais e globais), oportunizando uma estrutura de cooperação permanente e contínua para seus Estados-membros negociarem questões políticas, econômicas e sociais.

Ainda como razões, encontram-se a inclusão das perspectivas socio-jurídicas dos Estados componentes das organizações internacionais, bem como a necessidade de consensos jurídicos aplicáveis e ajustáveis a cada novidade proveniente do rápido desenvolvimento econômico e tecnológico global das últimas décadas.

Evans considera soft law como instrumentos de caráter não vinculativo utilizados nas relações internacionais contemporâneas pelos Estados e organizações internacionais [4], ou seja, entendimentos e diretrizes constituídos pelas referidas organizações, a partir das negociações entre seus Estados-membros, que aderem o texto, cujo as regras não são de cumprimento obrigatório.

Essa característica não vinculativa facilita “o desenvolvimento de ideias compartilhadas de negócios globais, com grande possibilidade de flexibilidade quando das incertezas dos negócios pactuados”35, fazendo com que esse processo de interação entre os entes gere possibilidade de mudanças na percepção dos interesses de cada um sobre um determinado assunto.

Ademais, segundo Shelton apud Gregório, os instrumentos de soft law têm os procedimentos de adoção, alteração e revisão mais rápidos, tornando-se mais adequados às questões que necessitam de revisões reiteradas.

Enquanto para alguns soft law ainda apresenta aspectos imprecisos, para outros, oferece aspectos multifacetados: soft law como instrumento regulatório e não norma jurídica; como etapa prévia à criação da norma jurídica tradicional; como fonte de direito; como opinião pública internacional; como norma de natureza interdisciplinar, pois versa sobre questões jurídico-políticas, econômicas ou morais.

Além do direito internacional, soft law se faz presente em outros ramos do direito como arbitragem internacional, ambiental e empresarial, caracterizando por abordar aspectos políticos, jurídicos, éticos, econômicos e sociais. Ainda se estende por diversas modalidades: conteúdo aberto de enunciados, inclusive com viés principiológico; conteúdo que dispõe sobre métodos alternativos de conflitos (arbitragem, conciliação e mediação), atos entre os Estados ou de organizações não governamentais que não sejam obrigatórios e instrumentos produzidos por organizações objetivando diretrizes de comportamento sociais (códigos de conduta), protocolos, guia de boas práticas.

São conhecidos exemplos de soft law: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o meio ambiente e desenvolvimento (ECO-92), os padrões adotados pela International Organization for Standardization (ISO), as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outros, temas que denotam a real importância do soft law [5].

Para os juristas Haocai e Gongde, os direitos humanos constituem um importante princípio para a política e governança, devendo o Estado assumir a responsabilidade de respeitar e proteger os direitos humanos, de forma que as relações entre o Estado e seus cidadãos sejam juridicamente reguladas. Para a proteção integral dos direitos humanos [6] é necessário o equilíbrio entre as normas jurídicas e as garantias institucionais, um equilíbrio alcançado entre a proteção provida pelo Estado e a demanda por direitos expressadas por seus cidadãos.

Dentre outros fatores, uma característica fundamental para existência desse equilíbrio é um sistema legal composto por diferentes conteúdos e formas de normas jurídicas adequadas ao dinamismo e à complexidade da engenharia social dos direitos humanos em sua efetividade: princípios gerais, normas jurídicas substantivas, procedimentais, públicas, privadas, nacionais e internacionais, ou seja, constante presença e interação entre hard law e soft law.

O pensamento sistêmico reflete na estrutura do soft law, na medida em que observamos a complexidade do viver contemporâneo no tratamento de questões globais, como a preservação do meio ambiente e o aquecimento global; a intersubjetividade a partir da visão diversificada de seus interlocutores, resultando em uma visão sistêmica das situações-problema; a capacidade de adaptação e celeridade que os instrumentos da soft law apresentam aos cidadãos do mundo, acompanhando o avanço da ciência e da tecnologia em tempo real.

Se não bastasse, o soft law atende ao rompimento do tradicionalismo jurídico ao desconectar o poder e a violência das normas duras, elaborando um conjunto de regras não vinculativas e de livre adesão; ao legitimar as comunidades e reconhecer como instrumento do soft law todo conjunto normativo produzido por instituições ou grupo de pessoas reunidas para aquele dado fim; ao proporcionar mudanças no curso da história na criação e desenvolvimento de novos direitos; além de adentrar no universo do cuidado e da ética nas relações humanas, a partir de suas primeiras declarações (DUDH) e de suas orientações principiológicas que dão o tom das relações humanas locais-globais. No hard law, as máquinas podem e vão performar melhor do que humanos, já no soft law, humanos utilizarão a tecnologia para se libertarem de processos repetitivos, para se dedicarem a uma Justiça mais qualitativa e menos quantitativa, mais humana e menos burocrática.

Feitas essas considerações, entende-se que soft law significa co-criar a Justiça com os indivíduos e organizações, prevenindo relações humanas que possam se comprometer e trabalhando com conceitos de ética e moral aplicadas não só ao processo, mas ao desenho social das relações tendo como viga central o cuidado [7].

Para saber mais sobre o assunto, confira o artigo científico “soft law como paradigma emergente da sociedade contemporânea” que integra a obra recentemente lançada “Cuidado e Cidadania: Desafios e possibilidades”, coordenada pelos autores Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira e Antônio Carlos Mathias Coltro.

 

IPublicado primeiramente em Empório do Direito

Notas e Referências

[1] HAOCAI, Luo; GONGDE, Song. Balance and Inbalance in Human Rights Law. In: WEI, Zhang. Human Rigths and Good Governance. Leiden: Brill Nijhoff, 2016, p. 180-196.

[2] Klabbers, Jan. The Concept of Treaty in International Law. Netherlands: Kluwer Law International, 1996, p. 157-164.

[3] DUPUY, Pierre-Marie. Soft Law and the International Law of the Environment. Michigan Journal of International Law. Lansing, v. 12, n. 2, p. 420-435, 1990. Disponível em: http://repository.law.umich.edu/mjil/vol12/iss2/4. Acesso em: 15 jan 2019.

[4] BOYLE, Alan. Soft Law in International Law-Making. In: EVANS, Malcolm. International Law. 4a ed. New York: Oxford University Press, 2014, p.118-136.

[5] GREGORIO, Fernando da Silva. Consequências sistêmicas da soft law para a devolução do direito internacional e o reforço da regulação global. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Sao Paulo, v. 95, pp. 299-309, 2016.

[6] Termo que expressa uma visão integral/sistêmica dos direitos humanos, conforme dispõem os autores ao observarem as imbricações dos aspectos que os direitos humanos representam no desenvolvimento da cidadania. No original: “The respect and protection of human rights constitutes a basic goal of legal development, and since human rigths laws lies at the ‘core’ of modern law, the failure to respect and protect rights such as civil rights, political rights, economic, social and cultural rights, rights to life and development rights induced by unbalanced human rights law will not only damage the goals of human rights protection and legal development, but also prevent citizens from achieving the development and freedom they should enjoy”. O respeito e a proteção dos direitos humanos constituem um objetivo básico do desenvolvimento legal e, como os direitos humanos estão no ‘núcleo’ do direito atual, a falha em respeitar e proteger direitos como direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, direitos à vida e direito ao desenvolvimento de direitos induzidos por normas jurídicas não apenas prejudicarão os objetivos da proteção dos direitos humanos e do desenvolvimento legal, mas também impedirão os cidadãos de alcançarem o desenvolvimento e a liberdade de que deveriam gozar (tradução nossa). In: HAOCAI, Luo; GONGDE, Song, op. cit., p. 181.

[7] FERREIRA, Juliana; MAZURKIEVWICZ, Lígia; BARBOSA, Ruth. O soft law como paradigma emergente da sociedade contemporânea. In: Pereira, Tania da Silva. Oliveira, Guilherme. Coltro, Antonio Carlos Mathias. Cuidado e Cidadania: desafios e possibilidades. Rio de Janeiro: GZ, 2019.

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De Soft o que tem a Law?

O Direito tradicional constituído por um ordenamento jurídico permeado de normas estanques apresenta atualmente sinais de crise no Brasil: a politização da Justiça, problemas políticos tornam-se cada vez mais jurídicos e a escalada dos conflitos, mais desentendimentos e mais processos. Ainda, a falta de efetividade de decisões judiciais, tornando a realidade do processo distante da realidade social e demonstrando claramente o atraso da área jurídica em estruturar relações sociais e demandas populares.

Esse Direito, caraterizados por pressupostos da objetividade, simplicidade e estabilidade, pode ser conhecido por um nome: hard law, o “direito duro”. A objetividade determina que os profissionais do Direito atuem de forma objetiva, jurídica e imparcial sobre os casos, eliminando o caráter subjetivo de seus interlocutores.

Simplicidade na medida em que a análise do caso se restringe a determinada situação sem considerar suas implicações em relação ao meio (individual, familiar, social, profissional), e estabilidade tendo em vista que são normas abstratas e gerais, a lei é para todos sem distinções. Em suma, bastaria um “cabo de esquadra” ou um “guarda da esquina” a julgar.

O que dá visibilidade a crise do hard law é o surgimento de problemas sem solução: decisões jurídico-políticas que evidenciam a anomalia da objetividade, por exemplo. Antes de serem casos difíceis, são situações que demandam nova forma de pensar o Direito para organizar as relações humanas, segundo os anseios da sociedade.

Nessa área de casos aparentemente insolucionáveis surge o soft law, o “direito flexível”. Nele, a proposta é pensar sistemicamente o Direito, reconhecendo a intersubjetividade de seus interlocutores, a autonomia que possuem para resolverem consensualmente seus conflitos, a capacidade para autogerirem suas relações e a percepção de si mesmos e dos sistemas nos quais estão inseridos. Dessa forma nos situamos no mundo como agentes construtores da nossa realidade social e preparados para as incertezas do futuro.

Podemos pensar que há flexibilidade e, quiçá, suavidade no Direito quando ele deixa de manter forçosamente as regras jurídicas abstratas vigentes e passa a cuidar das relações humanas, prevenindo conflitos e moldando-se as demandas sociais. Direito a serviço de uma sociedade organizada em processo constante de mudanças.

No soft law, os profissionais do Direito deixam as atividades mecanicistas para as máquinas e criam ideias e atitudes para reformular seu perfil e adequá-lo a uma concepção mais humana de Justiça, passando a trabalhar prioritariamente para as pessoas e com as pessoas, elegendo o Cuidado como valor jurídico maior.

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